Pimenta: Lugar garantido à mesa
Tradicionalmente, a pimenta marca presença na culinária brasileira e também de outros povos. Essa relação remonta à época das Grandes Navegações, entre os séculos 15 e 17, quando os europeus estavam à procura de um novo caminho para chegar às Índias. Nesse período, as especiarias – dentre elas a pimenta – eram trocadas por ouro.
“Quando Cristóvão Colombo chegou à região do Caribe, viu que os índios utilizavam uma pimenta e levou um pouco dela para os reis Fernando (de Aragão) e Isabel (I de Castela). Como passou a ser um condimento apreciado, rapidamente ganhou o mundo. A Índia é um grande consumidor de pimenta, aliás toda a Ásia”, contextualiza Arlete Marchi Tavares de Melo, engenheira agrônoma e pesquisadora aposentada do Instituto Agronômico de Campinas.
Do gênero botânico Capsicum, as pimentas apresentam diversidade de tamanho, formato, cores e pungência (calor) e pertencem à família das solanáceas, que também contemplam o pimentão, o tomate, a berinjela e o jiló. É uma planta exigente em calor e sensível a baixas temperaturas. Por isso, o cultivo da pimenta é tradicional em regiões mais quentes do Brasil, como o Centro-Oeste e o Nordeste. Mas o cultivo também é feito em regiões como Sudeste, em campo aberto ou estufa.
Quando falamos em Brasil, é imenso o volume de pimenta produzido e consumido. Porém, praticamente não existem estatísticas sobre a planta. O IBGE disponibiliza informações somente sobre o cultivo da pimenta-do-reino. Segundo esses dados, de 2015 a 2017, a área destinada à cultura cresceu 28% no Brasil, passando de 22.384 hectares para 28.799 hectares.
“Já vi produtores que começaram e pararam. Nos últimos anos, tenho visto um mercado estável, mas alguns produtores, para atender ao mercado de feirantes, sempre têm uns pés de pimenta”, observa Sérgio Mitsuo Ishicava, assistente agropecuário da Coordenadoria de Desenvolvimento Rural Sustentável da Regional Bauru, ligada à Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo.
Os dados registrados não refletem, nem de longe, a realidade do mercado. Para se ter uma ideia, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) possui estatísticas do mercado mundial de pimentas, mas o Brasil não figura porque não tem dados computados.
Essa dificuldade é justificada pela comercialização informal, pois geralmente a pimenta é cultivada por agricultores familiares e vendida na beira da estrada, no mercadinho e na feira da cidade. “A exceção são as regiões que possuem agroindústrias atuantes na produção do molho da pimenta”, comenta o assistente agropecuário.
Diante da escassez, é possível encontrar informações computadas pelo Programa Brasileiro de Modernização do Mercado Hortigranjeiro (Prohort), executado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que reúne dados de comercialização de produtos hortigranjeiros nas principais Ceasas do país.
Segundo dados disponibilizados pelo Prohort, em 2009, as Centrais de Abastecimento receberam 6.952.156 quilos de pimentas, equivalentes, em moeda, a um valor de R$ 18.657.349,97 com preço médio por quilo de R$ 2,68. Já em 2018, a quantidade saltou para 13.592.031 quilos, equivalentes a R$ 91.618.438,38, com preço médio de 6,74 por quilo.
A Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp) elaborou uma publicação chamada Pimentas – Capsicum ssp, que traz o cálculo de frequência das pimentas de janeiro a dezembro, sendo as de maior sazonalidade as pimentas cheiro doce, bode e dedo-de-moça.
Materiais com mais qualidade
O engenheiro agrônomo Ishicava, da Coordenadoria de Desenvolvimento Rural Sustentável, atribui aos programas de culinária a procura por pimentas como a dedo-de-moça e observa que, para atender o cliente da banca da feira, às vezes, o produtor retira uma semente da pimenta do vizinho e planta. “Tem muito isso no Brasil. Porém, quando se age dessa forma, muitas vezes, há chance de levar alguma doença ou uma qualidade talvez não muito bem apurada do material”, alerta.
É justamente nesse ponto a contribuição dos engenheiros agrônomos ao segmento, especialmente em setores de pesquisa como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Instituto Agronômico de Campinas ou empresas fornecedoras da iniciativa privada, que trabalham no desenvolvimento e melhor apuração das variedades disponíveis no comércio da semente.
“A Embrapa tem lançado alguns materiais no mercado, por exemplo, a pimenta BRS Mari, selecionada na região Centro-Oeste e trabalhada na resistência a algumas doenças. Esse é um ponto muito interessante porque os técnicos desenvolvem, por meio de pesquisas científicas, materiais de melhor qualidade genética, sanidade, uniformidade da variedade, alto rendimento, e também procuram desenvolver incorporações a algumas resistências, como virose e doença fúngica”, explica Ishicava.
Se o mercado de pimentas no geral já é fracionado, quando partimos para as superardidas ou pimentas nucleares, como também são conhecidas, notamos as especificidades desse nicho.
“Quando a pimenta superardida começou a aparecer, há cerca de 15 anos, vi uma pimenta no Mercadão pelo preço de R$ 20. Hoje, elas são mais produzidas e o preço diminuiu”, lembra a engenheira agrônoma Arlete. “Por conta das pimentas superardidas, há um despertar maior de interesse para esse mercado, que cresce ano a ano, mas que, infelizmente, não tem muitos dados.”
Dos 18 tipos de pimentas listadas na publicação da Ceagesp, três são classificadas como de pungência muito alta: Trinidad Moruga Scorpion, Bhut Jolokia Vermelha e Bhut Jolokia Amarela.
Paixão exótica
É comum durante as refeições haver ao menos uma pessoa que pede uma pimenta forte. “E sempre alguém vai dizer: tem, e agora você vai ver o que é bom”, brinca Fábio Tuma, proprietário da empresa Viciado em Pimentas.
O que faz a pimenta arder são as unidades de capsaicina, seu princípio ativo. A pungência é medida pela escala Scoville, criada pelo farmacêutico Wilbur Scoville, em 1912, metodologia que consiste na diluição do extrato de pimenta em uma solução de água e glicose até o momento em que não haja ardência no paladar. Ou seja, quanto maior a necessidade de diluição da pimenta, maior a pungência.
“O controle da pungência é genético, mas altamente influenciado por condições ambientais. Falta d’água e de adubação aumentam o teor de capsaicina. Os especialistas aprenderam e têm trabalhado no controle ambiental para aumentar o teor”, explica Arlete.
Segundo Tuma, as pimentas nucleares têm como característica passarem de 1 milhão na Escala Scoville e são assim denominadas em analogia ao ‘estrago causado pelas bombas nucleares’. “Em contato com as papilas gustativas, as pimentas nucleares liberam uma quantidade grande de capsaicina”, explica Tuma. Por isso, no início, a pessoa acha que não está fazendo efeito e, de repente, sente o forte ardor. Após morder a pimenta nuclear, a pessoa tem um pico de ardência entre 8 a 16 minutos.
De acordo com o Centro de Qualidade, Pesquisa e Desenvolvimento da Ceagesp, a capsaicina pura, composto orgânico responsável pela pungência da pimenta, pode chegar a 16 milhões de unidades na Escala Scoville.
As três mais fortes
Durante alguns anos, o México foi considerado o país da pimenta mais forte do mundo com a Habanero, de 400 mil unidades Scoville. Até aparecer a Bhut Jolokia, uma pimenta nativa da Índia com 1,304 milhão unidades Scoville. “Ela é uma pimenta nativa, não é híbrida, ou seja, feita em laboratório”, pontua o especialista do Viciado em Pimentas.
Ela seguiu como mais forte até 2011, quando chegou a Trinidad Moruga Scorpion, de Trinidad e Tobago, com 2,009 milhões unidades Scoville. Em 2013, por meio de um cruzamento, o cultivador americano Edie Currie chegou à Carolina Reaper com 2,2 milhões unidades Scoville. “A pessoa que não estiver acostumada com essa pimenta, se comer um fruto inteiro, pode engasgar ou travar a glote e parar de respirar”, adverte Tuma.
Tudo indica uma mudança no ranking mundial das pimentas superardidas em 2020. Logo o reinado da Carolina Reaper acabará, pois a Piper X, com 3,180 milhões de unidades Scoville, chegará ao mercado.
Entusiasta das superardidas, Fábio Tuma começou a consumir pimentas na infância. Claro, escondido, pois seu pai era um colecionador da planta. A degustação foi o ponto de partida para o empresário iniciar uma viagem pelo mundo das pimentas e se especializar nas hoje chamadas nucleares.
Em 2006, ele abriu a empresa e começou a plantar na estância hidromineral de Monte Alegre do Sul (SP). No início, era um arbusto e um pé de pimenta Bhut Jolokia. Logo, passou para 50 pés e, hoje, são 30 mil pés de pimentas. A expectativa do produtor para setembro de 2019 é chegar a 45 mil pés, com colheita de 1 tonelada de pimentas.
Nicho das superardidas
Atualmente, a Trinidad Scorpion é muito utilizada nos EUA para a feitura de gás de pimenta.
A maior parte das pimentas superardidas é utilizada para a alimentação em uso reduzido. É necessário comer com cautela, sem excesso. “Faço muitos desafios. Como já acostumei, como cinco pimentas (Carolina Reaper) de uma só vez. Mas não recomendo isso a uma pessoa que não está acostumada. Fico dois dias passando um pouco mal”, comenta o produtor.
Na empresa de Tuma, as pimentas são processadas e envazadas para o consumidor degustá-las em pequenas doses.
Para Arlete, o mercado de pimentas que abastece a indústria alimentícia é grande. Mas define as pimentas superardidas como um nicho, status no qual deve se manter no futuro. A engenheira vê potencial uso das nucleares na produção do gás de pimenta.
Os consumidores das superardidas são pessoas acostumadas a comer pimentas, a maioria homens. Algo que Fábio Tuma define como um clube. “São pessoas que buscam pimentas para desafiar o melhor amigo, ou aquele consumidor que já não aguenta mais comer a pimenta de supermercado. Geralmente, ele consome pimenta diariamente. É um vício. O consumidor de pimentas sempre quer mais”, diz Tuma. Isso porque a pimenta libera a endorfina e a sensação de prazer, pois atua no sistema nervoso central e possui efeitos psicoativos.
Já Arlete entende que “os apreciadores verdadeiros gostam de pimenta pela pungência, mas não a superpungência”. “Em minha opinião, as pessoas experimentam a superardida mais por curiosidade, mas elas não fazem uso diário”, observa.
O ano inteiro
Na Viciado em Pimentas, a safra se dá o ano inteiro porque trabalha com estufas fechadas, que são controladas, e as de campo aberto, cuja produção é interrompida de maio a julho, devido às baixas temperaturas.
A plantação de pimentas sofre interferências das mudanças climáticas. Tanto o excesso como a falta de calor matam a planta. Por isso, tudo tem de ser controlado. “Ela gosta de irrigação a cada três dias. A pimenta não gosta muito da irrigação foliar, que tem de ser feita de manhã ou fim de tarde. A irrigação via solo pode ser feita a qualquer hora do dia. Durante as chuvas, no verão, dá muita podridão de fruto, ou seja, perde-se 30% da colheita e tem-se o amarelecimento das folhas”, explica Tuma. Desde a germinação até a primeira colheita, leva-se oito meses.
Para ele, o desafio de trabalhar com pimentas nucleares no Brasil são as pragas e o clima. “Nós não usamos agrotóxicos e na primeira semana de março deste ano eliminamos 720 pés de pimenta por conta da mosca branca. O clima do Brasil é complicado. Está um sol do meio dia e de repente cai aquela chuva com a água em baixíssima temperatura, e estraga todos os frutos.” A formiga também é uma vilã da plantação, pois pode acabar com 500 pés em uma noite.
Muito estudo e persistência são as dicas para o agricultor que deseja ingressar no cultivo de pimentas nucleares. “É necessário muito amor e ficar de olho.”
Foi dessa forma que Tuma, no retorno de uma viagem aos EUA e após estudar a hibridação, teve a iniciativa ousada que deu origem a uma pimenta nuclear em solo brasileiro. Durante a noite, ele ia até a plantação e fazia a polinização cruzada da Carolina Reaper e da Trinidad Scorpion. “Na época, eu era chamado de louco porque queria criar uma pimenta de 4 milhões de unidades Scoville. Enviei o laudo para a Unicamp e veio com 1,820 milhão unidades Scoville.”
Com o resultado, se ele enviasse o laudo para o Guinness World Records, posicionaria a pimenta como a terceira mais forte do mundo, inserindo o Brasil no ranking. Porém, ele quer investir na primeira colocação. A criação coincidiu com o nascimento de suas filhas gêmeas, em 2013, batizadas como Victoria e Nicole, e a pimenta foi incluída no catálogo da Unicamp como VicNic 1313, iniciais dos nomes das meninas.
Uma nova cultivar pode surgir,antecipou Tuma à reportagem do JEA. Ele apresentará mais uma pimenta oriunda da estufa em breve e a enviará para análise na Unicamp. Agora, é aguardar a ardida novidade do inquieto produtor.
Texto: Caroline Rodrigues
Fotos: Arlete Marchi T. de Melo
Matéria originalmente publicada no Jornal do Engenheiro Agrônomo Ed.306