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Agricultura não é a vilã do consumo de água

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Agricultura não é a vilã do consumo de água

22 de fev de 2021 Notícias

No ranking do consumo de água, a agricultura aparece como número um; a pecuária, como número dois. Porém, não se pode dizer que a agricultura seja a vilã no que diz respeito à conservação desse insumo vital.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a agricultura é, ao mesmo tempo, causa e vítima da escassez de água. Representa aproximadamente 70% das extrações de água doce. A agricultura por irrigação gera 40% das colheitas, mas é o setor sobre o qual recai 84% do impacto econômico da seca. 

Apesar de a demanda da água ser maior na irrigação, como aponta o relatório da Agência Nacional das Águas (ANA) de 2019 (a retirada é de 1.020 m3/s, o consumo é de 728 m3/s, e o retorno é de 292 m3/s), o recurso é utilizado com eficiência. É o que afirma Thiago Fontenelle, coordenador de estudos setoriais da ANA: “O uso da água na agricultura é um dos mais eficientes. Os métodos de irrigação são eficazes, com a adoção da irrigação localizada e irrigação por pivôs centrais”. 

Também é importante diferenciar que grande parte da água usada na agricultura retorna para os lençóis freáticos e para os rios. A pesquisadora e sócia da AgroIcone, Laura Barcellos Antoniazzi assinala: “A água volta com qualidade diferente, mas grande parte volta para o sistema”. 

Ciro Rosolem, professor titular da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FCA/Unesp-Botucatu), argumenta que o Brasil tem potencial para aumentar o uso da água na irrigação. Por outro lado, ele aponta que é necessário melhorar o uso da água nas cidades. “Perde-se 40% a 45% de água ao tirá-la dos rios para chegar às casas. Essas perdas acontecem por problemas no encanamento, no tratamento e nos ‘gatos’.”  

Rosolem acrescenta que, no setor agrário, um caminho é financiar a água na propriedade rural. “Construir represas para segurar a água é uma das soluçoes. Outra é usar uma irrigação mais eficiente. Para cada cultura, há uma, que pode ser por microaspersão e gotejamento.” 

Angelo José Rodrigues Lima, secretário-executivo do Observatório da Governança das Águas (OGA), corrobora que a irrigação não é vilã. “O que pode ser considerado como os vilões são os métodos equivocados de irrigação. E mesmo nosso modelo de agricultura precisa ser aperfeiçoado, afinal, precisamos de alimentos, é possível modificar esse quadro. Já temos tecnologia suficiente para isso.” 

Fontenelle, da ANA, é otimista com o uso e a disponibilidade desse insumo. “O Brasil tem uma boa disponibilidade de água, terra e condições propícias. O país tem maior potencial de expansão. Há áreas estressadas, como o Sul do país, nas áreas produtoras de arroz, como a bacia do Uruguai. Jacuí e Santa Maria são, por exemplo, regiões que há situação de recursos hídricos bastante elevados.” Na visão do técnico, não há problemas de recursos hídricos, “e a quantidade de água para produzir uma tonelada de arroz vem caindo ano a ano. Há dez anos, o produtor tem buscado melhorar esse índice”. 

A Agência Nacional das Águas tem exigências mínimas com uma tabela de eficiência do uso da água. “Todo produtor precisa de autorização do uso da água para irrigar. Essa outorga do uso da água tem de ser pedida para a ANA, caso ela esteja em âmbito federal.” Fontenelle aponta que há duas formas para buscar o aumento da eficiência. Uma delas é a exigência mínima dos sistemas de irrigação. A segunda é a própria fiscalização, que vai a campo para verificar se as regras estão sendo cumpridas. 

Segundo ele, as perdas ocorrem em todos os setores. Fontenelle reconhece que a perda no país é aparente, mas elogia o Estado de São Paulo, onde há um nível menor de perda. “De qualquer forma, o Brasil sabe usar a água. Os agricultores são altamente técnicos, porque a ineficiência custa ao produtor.” Na visão do técnico da ANA, os órgãos de controle exercem bem seus papéis. 

A água não chega a ser um problema. “O que temos é um desbalanceamento muito grande em atividades hídricas e disponibilidade, como na Amazônia, onde não há irrigação”, conclui Fontenelle.   

O executivo da OGA comenta que o Sistema Estadual de Recursos Hídricos do Estado de São Paulo data do início da década de 1990 com a política estadual de recursos hídricos e o Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SigRH). Segundo Rodrigues Lima, “a quantidade de água no território paulista é considerada boa devido aos aquíferos localizados na região oeste”. 

Ele acrescenta ainda que existe um desafio a ser enfrentado pelas principais instituições do sistema paulista. “Na realidade, o termo paridade é utilizado equivocadamente do ponto de vista da sociedade civil, pois no Conselho e nos Comitês Paulistas há mais representantes do poder público.” Para o executivo, “a função do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CRH) é formular e acompanhar a implantação das políticas de recursos hídricos do Estado”. 

Lupercio Ziroldo Antonio, diretor de Engenharia e Obras do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) do Estado de São Paulo, concorda que é equivocado dizer que há algum vilão, quando há uma crise hídrica em alguma bacia hidrográfica. “Evidentemente que alguns setores, dependendo da bacia hidrográfica estudada, podem ter uma percentagem maior do uso dos recursos hídricos em função da vocação da bacia. Podemos ter bacias com vocação industrial, bacias com vocação agrícola ou bacias com uso preponderante para o abastecimento.” 

Na opinião do executivo, quando há água em disponibilidade suficiente para todos os segmentos, ou mesmo quando há escassez, é necessária uma estratégia de planejamento que equalize o uso dos recursos hídricos para todos os usos. “Temos de entender que a reserva de água que existe hoje numa bacia é a mesma que existirá no futuro, sendo que teremos desenvolvimento e aumento de população, ou seja, só com planejamento, desenvolvimento de políticas públicas integradas e efetivamente ações proativas de melhores tecnologias, reúso e uso racional da água, pode se garantir água no futuro para todos os usos.” 

Competição: área urbana x área rural 

Ziroldo Antonio, do DAEE, argumenta que não é possível esquecer do uso dos recursos hídricos nas malhas urbanas e na zona rural. “É claro que o uso preponderante dos recursos hídricos é para o abastecimento das pessoas e é dentro das malhas urbanas que as pessoas moram. É também nos perímetros urbanos que estão, na maioria das vezes, as indústrias que geram emprego e renda.”             

Ele enfatiza que é na zona rural que se desenvolvem a agricultura e a pecuária que fornecem o alimento e onde estão as nascentes dos cursos d’água. “Em paralelo, se fizermos uma estatística média, podemos dizer que 95% das populações estão em 5% do território, ou seja, temos que cuidar da água na zona rural para que exista água para as pessoas e para o desenvolvimento.” 

Cobrança da água 

Uma das soluções apontadas pelos especialistas é a cobrança pelo uso da água no setor agrícola. No Estado de São Paulo, por exemplo, a cobrança foi implantada não apenas pelo uso dos rios, mas também das bacias afluentes ao rio Tietê e em bacias afluentes ao rio Grande. Os editais estabelecendo a cobrança da área de atuação já estão concluídos, mas, no momento, a cobrança dos usuários rurais não foi regulamentada. 

Na opinião da executiva do Agroícone, a questão da cobrança da água é um ponto relevante. Já existe uma legislação para isso. Desde os anos 1990, que é o marco legal de recursos hídricos. Desde então, existe esse sistema de governança por bacia. “Os comitês de governança estabelecem a cobrança da água. Isso pode ajudar. Claro que a agricultura é um setor prioritário e sensível. É preciso fazer a cobrança do uso da água com a participação do setor agrícola. Há algumas bacias em que isso já é feito. No Vale do Paraíba, em geral, o setor agrícola é o último a pagar pela água porque é um setor mais sensível.”  

Irrigação: grande aliada 

Quando se fala em parâmetros para medir a produtividade do solo em relação ao emprego de recursos hídricos, a irrigação aparece como grande aliada. Para o biólogo paranaense José Roberto Borghetti, consultor da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Agricultura e Alimentação (FAO), “a irrigação é uma das tecnologias mais eficientes porque permite transferir grandes volumes de água para locais naturalmente secos e nos quais seria impossível o plantio de alimentos ou outros tipos de plantas”.  

O consultor aponta quatro métodos de irrigação: superfície, aspersão, localizada e subirrigação. Para cada método, há dois ou mais sistemas de irrigação que podem ser empregados. A razão pela qual há muitos tipos de sistemas de irrigação é a grande variação de solo, clima, culturas, disponibilidade de energia e condições socioeconômicas para as quais o sistema de irrigação deve ser adaptado. 

De acordo com Borghetti, não há um parâmetro, mas é preciso destacar que, até 2006, as áreas irrigadas pelo plantio representavam 25% do total de áreas usadas para plantio e colheita no mundo. Pelos estudos divulgados pela FAO, não é apenas o Estado de São Paulo onde ocorre a expansão da agricultura irrigada. Tocantins, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Sergipe, Pernambuco e Mato Grosso fazem parte da lista. 

Uso racional 

O executivo da DAEE considera primordial três pontos para ações de um uso mais racional e sustentável da água: a preservação das nascentes, uso de tecnologias adequadas de pouco desperdício de água para a irrigação (pouca quantidade de água para melhores produções) e manutenção adequada das estradas rurais que servem ao transporte dos produtos (evitando assoreamento dos cursos d’água). “Essas ações dependem da atuação dos proprietários rurais e de políticas públicas municipais. Se efetivadas, vão garantir água em disponibilidade na bacia”, diz.  

Ziroldo Antonio diz que um dos maiores avanços a partir da Lei nº 7.663/91 foi a implementação dos Comitês de Bacias Hidrográficas, 21 em todo Estado de São Paulo, que são colegiados constituídos por representantes da sociedade civil, do governo do Estado de São Paulo e dos municípios por meio de seus prefeitos. “Nesse ambiente dos Comitês de Bacias, se deliberam ações em prol da bacia, sempre com foco na disponibilidade e na qualidade das águas. Os produtores rurais, por meio de suas associações e entidades, estão presentes em todos os comitês, podendo participar direta ou indiretamente e apresentar soluções que melhorem as águas para todos.” 

Angelo Lima, da OGA, cita ainda que alimentos in natura, fibras e resinas têm contribuído significativamente como matérias-primas para cosméticos, perfumaria e medicamentos. “Novos nichos de mercados têm se destacado como uma das alternativas de renda para pequenos, médios e grandes produtores por serem mais sustentáveis.”  

Lima acrescenta que o Sistema de Plantio Direto (PSD) é uma forma de manejo do solo que envolve técnicas recomendadas com redução das perdas da água do solo, por exemplo. Ele menciona também outras vantagens, entre elas, controle da erosão, maior controle sobre a época de semeadura e redução da variação da temperatura do solo. 

Gestão tecnológica  

Para o próximo ano, está prometido o lançamento de um novo sistema de sensoriamento e controle baseado no conceito de Internet das Coisas (IoT na sigla em inglês) para gerir o uso da água em dois projetos-piloto, gerenciados pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O projeto Smart Water Management Platform (SWAMP) foi aprovado em 2017 e está ainda em desenvolvimento. Vem sendo testado na vinícola Guaspari, localizada no Espírito Santo do Pinhal, na Serra da Mantiqueira, divisa entre São Paulo e Minas Gerais, e na fazenda Rio das Pedras, Barreiras (BA). 

Um dos integrantes e líderes do projeto é o professor da Universidade Federal do ABC (Ufabc), Carlos Alberto Kamienski. Integram ainda pesquisadores da Embrapa Informática Agropecuária e Embrapa Instrumentação. A entidade conduz a implantação e a avaliação do projeto das duas unidades, trabalhando em conjunto com pesquisadores brasileiros e europeus. Os experimentos incluem um sistema de gerenciamento amigável para permitir o manejo de irrigação considerando a variabilidade espacial que acontece no vinhedo. 

Segundo a assessoria da Embrapa, “a plataforma tem como proposta oferecer ao agricultor um mapa diário de recomendação dinâmico, de acordo com um conjunto de informações em tempo real do clima, solo, condições de cultivo, além dos níveis e qualidade dos sistemas de fornecimento e da distribuição de água no campo”. A ideia é irrigar de forma variada de acordo com a necessidade específica das subáreas do pivô, denominadas zonas de manejo. 

Para a Embrapa, trata-se do maior programa de pesquisa e inovação criado pela União Europeia (UE), com financiamento de 80 bilhões de euros, que está em execução com prazo para ser concluído no fim deste ano. 

Território paulista 

De acordo com o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), as porcentagens de distribuição no uso dos recursos hídricos no Estado de São Paulo são diferentes dos números nacionais, devido à população e aos usos múltiplos. Os números atuais da conjuntura no Estado apontam para: 39,78% para uso de abastecimento público, 32,88% para uso rural, 20,50% para uso industrial e 6,84% para outros usos. 

Por Mari-Jô Zilveti 

*Matéria publicada originalmente na edição 311 do Jornal do Engenheiro Agrônomo