Alimentos biofortificados: força no prato dos brasileiros
Mandioca, batata-doce e milho com muito mais betacaroteno. Feijão enriquecido com nutrientes como ferro, selênio e zinco. Esses são apenas alguns exemplos de produtos na era da agricultura funcional, aqueles que oferecem não apenas funções nutricionais, mas também benefícios extras à saúde do consumidor.
Isso é possível graças ao trabalho dos cientistas, que, por meio da biofortificação, identificam as plantas com capacidade de absorver o máximo de nutrientes do solo e os transformam em verdadeiros “superalimentos”.
A biofortificação é uma técnica relativamente recente e que visa ao enriquecimento com nutrientes das partes comestíveis das plantas cultivadas, com o objetivo de proporcionar uma melhor nutrição aos seres humanos. Existem dois tipos de biofortificação, a genética, que se dá por meio da seleção de alelos; e a agronômica, que é uma técnica de desenvolvimento de fertilizantes com alta tecnologia para potencializar a absorção pelas plantas e o acúmulo nas partes comestíveis.
Estêvão Vicari Mellis, engenheiro agrônomo e pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, comenta que hoje é comum o
consumo de suplementos alimentares, por meio de pílulas ou pó, encontrados em farmácias. Porém, os nutrientes ofertados por esses produtos se encontram na forma inorgânica e a absorção de nutrientes pelo organismo, consumidos dessa maneira, é menor que quando ofertados na forma orgânica com alimentos biofortificados.
“Além disso, o custo das pílulas é muito mais alto que a biofortificação agronômica, o que limita o acesso da população carente. A melhor nutrição dos seres humanos, por meio de alimentos, promove diversos benefícios à saúde, dentre esses, destaca-se o aumento da imunidade”, argumenta Mellis.
Biofortificação agronômica
A biofortificação agronômica de alimentos é a aposta de pesquisadores brasileiros para reverter a falta de nutrientes em alguns solos agricultáveis do país. Essa técnica pode ser realizada com aplicações de fertilizantes no solo, com os cultivares já plantados, em solução nutritiva (cultivo sem solo) ou foliar e tem como finalidade fazer com que os nutrientes sejam acumulados e absorvidos nas culturas agrícolas, aumentando seu teor para a alimentação humana e animal.
Mellis explica que, de maneira geral, boa parte dos solos brasileiros, especialmente no cerrado, são ácidos e de baixa fertilidade, exigindo um manejo nutricional adequado para se alcançar grandes produtividades. Além disso, no caso do zinco, muitos solos brasileiros são deficientes. Portanto, precisam de um bom manejo nutricional para a obtenção de alimentos biofortificados.
Para o engenheiro agrônomo e também pesquisador do IAC José Carlos Feltran, o Brasil apresenta grande diversidade de solos com variações na fertilidade natural, indo desde os solos de baixa fertilidade aos muito férteis. “Dessa forma, o desenvolvimento de cultivares específicas para solos de baixa fertilidade, como por exemplo, o da mandioca, pode facilitar a produção em áreas mais degradadas, gerando alimentos biofortificados. Além do mais, esse processo pode ser feito em solos e também em cultivo sem solo, como o hidropônico, para a alface por exemplo.”
Apesar de ser possível produzir alimentos sem adição de adubos, na maioria dos casos a produção será baixa e pouco lucrativa. Portanto, Mellis recomenda a adubação das plantas, mesmo em solos de alta fertilidade, pois essa tecnologia evita a depauperação e o empobrecimento do solo, suprindo as quantidades exportadas pelos alimentos produzidos no local.
“A adubação das plantas precisa ser feita de maneira racional e sustentável, para isso é necessário que se faça a análise do solo, determinando os níveis de teores disponíveis de nutrientes. Com os resultados de análise de solo em mãos, os técnicos podem recomendar as quantidades de adubos a serem aplicadas para cada cultura específica”, explica o especialista.
O engenheiro agrônomo informa, ainda, que essas recomendações são baseadas em tabelas de adubação geradas por
meio de inúmeras pesquisas e são calculadas conforme os teores disponíveis no solo e a produtividade esperada. O Boletim 100 do IAC é o método oficial de recomendação de adubação do Estado de São Paulo, sendo usado inclusive em outros Estados.
Pesquisas no campo
Para Mellis, o manejo nutricional e a evolução genética precisam andar de mãos dadas para assegurar o sucesso da lavoura. De acordo com o engenheiro agrônomo, os programas de melhoramento genético de plantas buscam aumentar a produtividade com o lançamento constante de novas cultivares, que podem apresentar maiores exigências nutricionais, necessitando de mais doses de adubos.
O melhoramento é a principal forma de se obter alimentos de melhor qualidade, mas a adubação também é muito importante para se obter alimentos mais ricos nutricionalmente.
De acordo com Clorialdo Roberto Levrero, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Tecnologia em Nutrição Vegetal (Abisolo), a indústria de fertilizantes investe muito em pesquisa e desenvolvimento de fontes de nutrientes cada vez mais eficientes e na agregação de aditivos que auxiliem as plantas na otimização dos seus processos fisiológicos, visando especialmente a racionalização do uso e a absorção efetiva dos nutrientes. “A indústria tem investido também na difusão das boas práticas de nutrição. Esta é uma ação permanente, que pode ser cada vez mais efetiva a partir do desenvolvimento de novas cultivares com maior potencial de absorção e acúmulo de nutrientes.”
Em relação à biofortificação genética, a Embrapa coordena um importante programa de pesquisa, juntamente com algumas universidades. Já a biofortificação agronômica, além do IAC, que é um dos pioneiros, Ufla, Unesp, USP, entre outras instituições, têm desenvolvido vários trabalhos. Contudo, embora seja uma técnica promissora, os especialistas consideram que esse volume de trabalhos ainda é pequeno.
De maneira geral, todos os alimentos podem ser biofortificados. A maioria das pesquisas se concentra nos alimentos mais consumidos, como arroz, milho, feijão, soja, mandioca.
Em 2008, o IAC foi um dos primeiros a fazer parte do Programa Global de biofortificação de plantas com zinco, o HarvestZinc. Os primeiros estudos foram feitos em milho, trigo, feijão e soja e conduzidos pelos pesquisadores Aildson Pereira Duarte e Estêvão Vicari Mellis.
Em 2010, o pesquisador aposentado Ronaldo Berton iniciou estudos com biofortificação agronômica de plantas com selênio, que atualmente estão sendo coordenados pela pesquisadora Aline Renée Coscione Gomes.
O IAC, desde 2006, estuda a biofortificação agronômica com zinco e selênio no milho, feijão, soja, trigo, alface, dentre outros cultivos, participando de programas globais como o HarvestPlus e o HarvestZinc, em parceria com pesquisadores de outros países.
Recentemente, iniciaram estudos com biofortificação de zinco em alface e café, alimentos muito consumidos pela população brasileira. O engenheiro agrônomo Luis Felipe Villani Purquerio, coordenador da pesquisa com alface, explica que “a biofortificação desse alimento foi obtida a partir de aplicações de doses crescentes de sulfato de zinco no solo, até o limite que não impacte a qualidade, a produtividade da planta e o ambiente”. E completa: “A aplicação somente do zinco não é comum, normalmente esse mineral é usado na produção de hortaliças em formulações de fertilizantes com outros micronutrientes, a não ser em casos em que o solo esteja deficiente”.
Mellis também comemora os resultados. “Conduzi por quatro safras consecutivas pesquisa sobre biofortificação de grãos de café com zinco, aumentando em 40% o teor de zinco no grão beneficiado.”
Outro trabalho vem chamando a atenção. Intitulado “Biofortificação agronômica do feijão-caupi com selênio para mitigar a fome oculta no Brasil”, recebeu o Prêmio Péter Murányi 2020, um dos principais do meio científico nacional, como a terceira melhor pesquisa brasileira. O engenheiro agrônomo e doutorando Vinicius Martins Silva e o professor doutor André Rodrigues dos Reis, ambos da Faculdade de Ciências e Engenharia da Universidade Estadual Paulista (FCE-Unesp) em Tupã (SP), estão à frente do estudo.
“Realizei inúmeros experimentos com a aplicação de selênio e zinco no feijão-caupi. Minha pesquisa consiste em melhorar a qualidade dos alimentos por meio da aplicação de nutrientes. Enquanto boa parte das pesquisas de nutrição de plantas visa à produtividade, na biofortificação o ponto-chave é levar mais conteúdo para a parte comestível da planta, seja na forma de nutrientes, vitaminas, compostos orgânicos, seja até mesmo por reduzir o conteúdo de componentes indesejados. No meu caso, por exemplo, aplicamos o selênio por ser um nutriente muito escasso na dieta humana, principalmente em regiões de menor poder aquisitivo, com menos diversidade de alimentos”, justifica Martins Silva.
As dificuldades
No Brasil, não há regulamentação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para alimentos biofortificados. Já em alguns países europeus, asiáticos e africanos, a biofortificação se tornou política pública e os agricultores recebem bonificações do governo para produzir alimentos biofortificados.
“Isso é importante, pois nem sempre a aplicação de mais doses de um nutriente vai aumentar a produtividade. A técnica da biofortificação é nova e pouco adotada pelos produtores brasileiros, pois ainda não há nenhuma política de benefício aos produtores por parte do governo. Porém, há potencial para isso, tanto pensando em políticas públicas, quanto em termos de novo nicho de mercado, como temos nos alimentos orgânicos” compara Mellis, do IAC.
Ainda de acordo com o engenheiro agrônomo, os principais desafios do setor de pesquisa em solos e nutrição de plantas são
aumentar a produtividade por área, produzir alimentos de qualidade e seguros para o consumo, de forma sustentável, diminuindo impactos ambientais. A grande dificuldade do setor é a falta de investimento em recursos humanos e financiamento das pesquisas.
Saúde pública
Os produtores rurais já adicionam o zinco, responsável por melhorar o vigor da planta. No entanto, o composto é utilizado na agricultura em quantidades insuficientes para repassar seus benefícios ao organismo humano. A deficiência de zinco pode causar problemas graves de comprometimento físico e intelectual.
Descoberto há mais de dois séculos, o selênio é um micronutriente primordial tanto para humanos quanto para animais. Isso porque suas propriedades antioxidantes contribuem para o bom funcionamento do sistema imunológico. A carência desse nutriente está relacionada ao aparecimento de problemas cardiovasculares e certos tipos de tumores malignos. A legislação brasileira já permite a adição de selênio em fertilizantes, porém, seu uso ainda está em fase de estudo.
Já o ferro atua principalmente na fabricação dos glóbulos vermelhos do sangue e no transporte do oxigênio em todo o corpo. Um dos principais problemas causados pela falta de ferro no organismo é a anemia.
A desnutrição humana é uma das principais causas de mortalidade no mundo. Por meio da biofortificação de alimentos, é possível prevenir doenças, aumentar o desenvolvimento físico e mental dos seres humanos, além de outros benefícios. Por isso, o engenheiro agrônomo José Carlos Feltran defende a biofortificação como estratégia de saúde pública. “O consumo de folhas, frutos, raízes e tubérculos biofortificados tem impactos positivos sobre a qualidade de vida da população, melhorando o status nutricional dos indivíduos e a imunidade, o que pode diminuir o uso do sistema de saúde das cidades”, sintetiza.
Vale ressaltar que a aplicação correta de fertilizantes é considerada como fator-chave para manter a segurança alimentar. É o que afirma Levrero, da Abisolo. “ Está comprovado cientificamente que a utilização das boas práticas de produção, em particular da nutrição das plantas, resulta em maior aproveitamento do potencial genético das plantas e na oferta de alimentos saudáveis e nutritivos.”
Levrero explica que a utilização dos nutrientes no momento certo, na dose certa e a partir de uma fonte eficiente, além de evitar desperdício, assegura melhor produtividade.
Ele acrescenta que a segurança alimentar passa pela oferta abundante de alimentos. A deficiência nutricional é responsável pela queda de produtividade e pelo aumento de incidência de doenças, que sobrecarrega o sistema de saúde e, em consequência, demanda recursos de grande monta por parte do Estado. “É uma política pública relevante para a construção do bem-estar das populações e da racionalização dos recursos “
Além dos benefícios à saúde pública, o investimento em biofortificação dos alimentos abre um novo nicho de mercado. “O combate à desnutrição e às carências nutricionais precisa ser o primeiro alvo. Em um segundo momento, utilizando as estratégias de comunicação adequadas, estes alimentos podem se tornar “diferenciados” e a exemplo dos alimentos orgânicos, agregando valor à produção”, afirma Levrero.
Biofortificação e enriquecimento de alimentos
Muitos podem confundir a biofortificação com o enriquecimento de alimentos, mas há diferenças. A biofortificação é a produção de alimentos, de forma natural, que acumulam maiores teores de determinados nutrientes nas partes comestíveis. Ou seja, é o aumento do teor de nutriente no alimento consumido in natura ou minimamente processado.
Já o enriquecimento de alimentos é feito por meio da adição de sais inorgânicos, principalmente em alimentos processados, como leite em pó e biscoitos. Além dessas técnicas, também existem os alimentos bioenriquecidos, que podem ter os seus teores nutricionais aumentados com o acréscimo de micro-organismos no processamento de alimentos, promovendo o aumento do teor de determinado nutriente pelo efeito indireto da ação desses micro-organismo.
*Matéria originalmente publicada no JEA 318.
Texto: Sandra Mastrogiacomo
Foto: Arquivo IAC