Avanços e recuos da conservação de solo no Brasil
Embora o Brasil tenha evoluído nas teorias e práticas da conservação de solo, degradação preocupa
Dados contidos em relatório da FAO/ONU dão conta de que 30% das terras do planeta estão degradadas. Erosão, compactação, desequilíbrio de nutrientes e perda de matéria orgânica são as causas principais. A erosão em solo agrícola e de pastagem intensiva varia entre cem a mil vezes a taxa de erosão natur al e o custo anual de fertilizantes para substituir os nutrientes perdidos chega a US$ 150 bilhões.
Perdas de culturas, segundo o estudo, chegam a 0,3% da produção anualmente. O relatório diz ainda que, se o processo não for interrompido, poderá ocorrer uma redução total de mais de 10% até 2050. Já a compactação do solo pode diminuir em até 60% os rendimentos mundiais das culturas agrícolas. Os danos causados são de longa duração ou mesmo permanentes.
Em 2016, a Embrapa Territorial calculou que a área cultivada no Brasil é de 65.913.738 de hectares. Um ano despois, a Nasa realizou um mapeamento global e confirmou esses números, com uma pequena diferença de 0,2% para o seu relatório. Os dados mostram que 10% do território brasileiro é utilizado para a produção de alimentos, fibras, biocombustíveis e matérias-primas (81 Mha – milhões de ha) e 21% com pastagens (179 Mha).
A preocupação com a degradação é uma constante entre os estudiosos. Ocoordenador nacional do Programa Nacional de Solos do Brasil (PronaSolos), engenheiro agrônomo Jose Carlos Polidoro, faz um resumo da evolução das práticas conservacionistas e da situação atual dos solos no país.
“Nos anos 1970, acreditávamos que somente práticas mecânicas seriam suficientes para controlar a erosão hídrica. A exemplo dos americanos e com a ajuda deles, ouvindo cientistas brasileiros como Quintiliano, Bertoni, Lombardi Neto, Mondardo e vários outros dos quadros do IAC, Iapar, DNPEA e diversas universidades federais e estaduais, mostramos aos produtores a importância do plantio em nível ou em faixas, das barragens ou terraços, canais escoadouros e bacias de captação no controle da enxurrada.”
Ele relata que nas duas décadas seguintes ganhou-se a consciência sobre a importância das práticas vegetativas, lideradas pelo plantio direto na palha ou sistema de plantio direto. “Todos entendiam que ganhavam a guerra contra a erosão e passamos a deixar de lado as práticas mecânicas, tirando ou distanciando os terraços, eliminando canais ou prados escoadouros e deixando as bacias de captação ou barraginhas somente para as estradas.”
No início, a erosão deu trégua, relata o pesquisador, quando os produtores adotavam os princípios do Sistema de Plantio Direto, já incorporando a rotação e a cultura de cobertura, incluindo a Brachiaria ruziziensis, cuja primeira referência data de 1998.
Porém, aos poucos, a erosão voltou. Isso ocorreu, segundo Polidoro, quando os produtores passaram a esquecer princípios básicos como a rotação plurianual de culturas e a necessidade da cultura de cobertura. “Isso é motivo de preocupação e mostra o efeito da falta de assessoria ou assistência técnica competente e habilitada”, avalia.
Não há um ranking que mostre qual a contribuição de cada atividade para a erosão do solo, conforme explica o engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Solos Pedro Freitas.
Entretanto, ele afirma que existem atividades que causam muito mais perda de solo e de água. “As estradas, sejam de asfalto, sejam de terra ou caminhos, são as campeãs nesse ranking. Mesmo sabendo que devem manter os taludes com cobertura vegetal e condução das águas de chuva, a maior parte dos governos municipais e estaduais e dos construtores não os faz, permitindo, assim, a concentração de água na estrada, provocando erosões e a destruição do patrimônio público”, afirma.
A mineração e as construções na área rural, segundo o pesquisador, vêm na sequência, na ordem dos fatores que geram erosão. “Mesmo assim, são ocorrências pontuais”, ressalta.
“Consideramos que existe uma erosão geológica natural que não chega a uma tonelada de solo por hectare por ano. A partir do desmatamento e da mudança de uso da terra, seja para culturas anuais, seja para culturas perenes, pastagem ou florestas plantadas, essa perda pode chegar a mais de 20 toneladas por hectare. Um solo com preparo intensivo com arados e grades, deixado sem qualquer cobertura, pode perder mais de 80 toneladas por hectare em um ano”, explica Freitas.
A erosão está presente em todas as regiões, especialmente na fronteira agrícola do Matopiba e na Amazônia Legal. No entanto, uma nova fronteira agrícola desperta em todo o país: as terras onde predominam os solos arenosos ou de textura leve.
Em São Paulo, essas terras ocorrem no eixo Botucatu–Castilho, entre os Rios Tietê e Paranapanema. Em todos os Estados da região Centro-Sul, existem vastas áreas com esses solos. “Essa fronteira despertou agora pela adoção de sistemas conservacionistas, que tornou regiões como o oeste da Bahia em grandes produtoras de grãos e algodão. No entanto, sabemos que existem diferentes tipos de solos arenosos e cabe aos engenheiros agrônomos definir quais deles têm potencial de uso para produzir sem degradar”, alerta o pesquisador.
Mesmo com todo o conhecimento existente sobre o comportamento de solos tropicais e subtropicais, a perda anual ainda é estimada em 1,4 bilhão de toneladas nos mais de 60 Mha de pastagens degradadas, a um custo anual de R$ 39 bilhões. “O incentivo à recuperação e reinserção dessas terras degradadas ao sistema produtivo, respeitando seu potencial de uso, pode diminuir em mais de 70% esse prejuízo anual, algo equivalente a R$ 27 bilhões, e, para isso, temos incentivos como o Programa ABC do Ministério da Agricultura”, comenta Pedro Freitas.
Ele explica ainda que nas terras com lavouras – anuais ou perenes – existe um extenso trabalho de recuperação e de adoção de sistemas conservacionistas em mais de 23 milhões ha. Nos mais de 9 milhões ha com cana-de-açúcar, a adoção das boas práticas agrícolas, especialmente por ocasião da reforma de canavial com o plantio de crotalária, soja, amendoim, girassol ou mesmo de gramíneas, como a braquiária, podem mitigar a erosão hídrica em mais de 50% da área sob reforma.
Ações de revegetação e reflorestamento em terras degradadas encontradas nas unidades de conservação, nas reservas indígenas, nas terras públicas, nos assentamentos, nos quilombos e nas áreas de proteção permanente e reservas legais podem significar uma economia de US$ 1,5 bilhão ou R$ 7,7 bilhões por ano.
“Ainda temos muito por fazer e o papel de engenheiros agrônomos é essencial, seja na pesquisa, seja no ensino, preparando profissionais, na consultoria ou na extensão rural. Sem uma estrutura de extensão rural, a degradação das terras e os severos impactos negativos da erosão hídrica tendem a aumentar”, enfatiza o pesquisador da Embrapa Solos.
Situação em São Paulo
No Instituto Agronômico de Campinas, sob a coordenação do pesquisador Jener Fernando Leite de Moraes, está em curso um projeto com o objetivo de levantar, por simulação, a situação atual da degradação dos solos paulistas.
Sabe-se que, desde a década de 1980, 80% da área cultivada do Estado de São Paulo vinha sofrendo processo erosivo, além dos limites de tolerância, causando perdas de 194 milhões de toneladas de terra/ano. “Apesar da falta de dados, atualmente, as condições pioraram e alcançam níveis tecnicamente intoleráveis, com uma produção de sedimentos que vem comprometendo nossos rios e diminuindo a vida útil de lagos e represas”, destaca o pesquisador do IAC Afonso Peche, engenheiro agrônomo, especialista em solos.
Assim como em outros Estados, São Paulo possui uma lei específica para a conservação de solos, a Lei nº 6.171. Embora a regulamentação seja positiva, está longe de ser cumprida.
As principais dificuldades para sua aplicação, segundo Peche, são a indiferença da sociedade como um todo, em relação ao tema, do governo, da iniciativa privada e dos agricultores. “Apesar da lei ser de 1988, pouco se fez para divulgá-la e raras foram as ações de levar essa lei ao cotidiano da agricultura. A grande maioria dos agricultores não sabe sobre sua existência e só toma conhecimento quando é autuada pela Defesa.”
O segundo ponto, para ele, é o modelo de gestão adotado nas propriedades agrícolas. “Esse modelo não prioriza a conservação do solo. O Brasil tem uma agricultura que produz muito, mas também tem um déficit considerável de boas propriedades conservacionistas”, diz o especialista.
Por fim, o pesquisador destaca aspectos relacionados ao perfil dos profissionais. “Os ambientes de produção apresentam sinais de degradação em função de anos de ocupação e erros continuados de manejo. Esses fatos exigem um profissional com uma percepção maior para orientação no planejamento, execução e acompanhamento das diferentes situações que o trabalho de conservação do solo exige. O baixo interesse demonstrado por alunos da graduação pelo assunto pode ser uma das causas do problema”, resume.
Peche ainda acrescenta que, no Brasil, a política de conservação do solo fica no papel e que poucos são os Estados, como Santa Catarina e Paraná, que têm programas de ATER específicos, mas, em sua opinião, ainda insuficientes diante do tamanho do problema da erosão.
Os impasses
A ausência de programas de ATER com foco em preservação de solo é um dos principais entraves apontados pelos especialistas para a disseminação da cultura e das práticas corretas de conservação dos solos.
“Sistemas conservacionistas requerem assistência e consultoria de engenheiros agrônomos, que são profissionais de nível superior habilitados para definir o potencial de uso das terras, analisando o solo, o clima e o relevo e as melhores práticas agrícolas para proteger o solo, evitando os impactos da erosão, para proteger o meio ambiente, fazendo dos agricultores produtores de alimentos e de água”, salienta Freitas.
“Um bom exemplo é o Sistema de Plantio Direto, que requer conhecimento agronômico para definir quais as culturas serão utilizadas para manter a saúde e a qualidade do solo, ter a maior eficiência de insumos, corretivos, fertilizantes, pesticidas e ainda proteger o meio ambiente.”
Na opinião de Peche, do IAC, os produtores brasileiros têm regredido nos aspectos ligados à conservação de solo em função de uma visão predominantemente produtivista.
“Grande parte dos agricultores pratica uma “agricultura de tabelas”, devido às facilidades da tecnologia. Não respeitam os limites da capacidade produtiva dos nossos solos, utilizando continuamente sistemas de cultivo ultrapassados, como é o caso da mobilização intensa do solo nos meses que antecedem as fortes chuvas do verão”, diz.
Essa prática traz em si uma contradição, apontada pelo pesquisador, pois “o único fator que leva à alta produtividade é justamente aumentar a capacidade produtiva do solo, o que, evidentemente, diverge da erosão”.
Em linhas gerais, os agricultores também esbarram em dificuldades financeiras e falta de políticas públicas de apoio. “A recuperação de uma pastagem degradada, por exemplo, tem um custo bastante elevado. Programas como o de microbacias têm mostrado que, com incentivo, é possível controlar a erosão, melhorar as condições do solo e produzir alimentos e água, sempre respeitando o meio ambiente”, lembra Freitas, da Embrapa Solos.
As consequências da degradação são incontáveis, como a falta de água para beber ou produzir energia, as enchentes que destroem casas, pontes e estradas. Acrescente-se ainda o surgimento de pragas, como destaca Peche, tais como a explosão de problemas causados pelos diferentes tipos de nematoides, doenças como o fusarium e diferentes tipos de fungos do solo.
Os especialistas lembram que, em conservação do solo, não existe ordem de prioridades, o manejo conservacionista é um todo de práticas como: cultivo em nível, cobertura permanente (verde ou seca), terraceamento, calagem, rotação de culturas, manejo de adubos verdes, integração lavoura-pecuária, manejo de pastagens, conservação de estradas.
O que conseguimos evitar
O pesquisador da Embrapa Solos Pedro Freitas destaca que, se a produção agrícola fosse feita como há cinco décadas, teríamos hoje uma perda anual de solo por erosão hídrica de 3,1 bilhões de toneladas. Se colocados em caminhões e enfileirados, seria uma fila que daria 80 voltas ao redor do planeta. “Chamamos isso de Potencial de Perda de Solo por erosão hídrica. Seria, nesse caso, uma triste média de 11 toneladas de solo perdidas por hectare ao ano ou 102 mil hectares por ano.”
Considerando que perda de solo significa prejuízos para o agricultor, para os governos e para a sociedade em geral, o pesquisador da Embrapa calculou um custo. “Chegamos a uma estimativa de um custo anual de U$ 15,7 bilhõesou R$ 86 bilhões. Nessa condição, cada um dos 212 milhões de brasileiros teria um prejuízo de R$ 400 por ano pela erosão hídrica. De todo, esse volume de solo perdido, 27% seria de áreas com culturas anuais e 47% nos 63 Mha de pastagens consideradas degradadas.”
Conservação de solo: uma responsabilidade de todos
Cabe ao governo, produtores, empresas e cidadãos, de maneira geral, o cuidado com a preservação dos solos, visto que se trata de um recurso natural fundamental para a vida, onde ocorre a produção primária.
Diferentemente de outros seres vivos, o ser humano possui a capacidade de manipular os recursos em seu benefício e adaptar o meio às suas necessidades.
Por essa razão, Polidoro considera que o cidadão também deve conhecer minimamente o recurso solo existente no país. “Por exemplo, não é possível ocupar algum espaço urbano ou rural sem respeitar a capacidade do solo em suportar tal pressão de uso” diz.
“No caso do produtor rural, o papel é ainda mais importante, pois ele usa intensivamente cerca de 30% do território nacional para alimentar 210 milhões de brasileiros, mais 1,5 bilhão de seres humanos em todo o mundo. Desta forma, por razões lógicas, o produtor rural deve ser o maior guardião direto do solo, pois dele depende seu sustento e o sustento de todos”, enfatiza.
Ele também chama a atenção para a responsabilidade das empresas, como as indústrias, que usam grandes volumes de água para manufaturar bens de consumo. “Se eu não pensar em usar eficientemente a água, mais demandarei do sistema solo-água, que são recursos naturais e finitos. E, ainda, se a devolução dessa água para a natureza não for adequada, aí ainda poluo e degrado o solo e a água.”
Quanto ao governo, é preciso traçar políticas efetivas de ordenação do uso e de ocupação e da conservação do solo. “No Brasil, há 26 leis estaduais e federais que tentam criar a governança sobre esse assunto e o país ainda perde bilhões de dólares por ano só com o processo mais enfático de degradação do solo e da água: erosão hídrica”, salienta o especialista.
Como coordenador nacional do Programa Nacional de Solos do Brasil (PronaSolos), Jose Carlos Polidoro afirma que o programa mostra um rumo para o país. “O programa trouxe, formalmente, no dia 26 de agosto de 2020, a tão esperada e necessária governança em solos no Brasil. Uniu os elos do Estado do nível federal ao municipal e unirá o Estado ao setor privado, para que seja efetiva a ideia de que o país do agronegócio, dos recursos naturais, da alegria seja também o exemplo mundial em relacionamento homem e solo”, conclui.
O PronaSolos
O PronaSolos – Programa Nacional de Levantamento e Interpretação de Solos do Brasil é regulamentado pelo Decreto nº 10.269, de 6 de março de 2020, que substituiu o Decreto nº 9.414, de 19 de junho de 2018. O programa tem cinco objetivos:
I – definir as áreas prioritárias e a agenda de trabalho para a execução dos levantamentos de solos em escalas geográficas iguais a 1:100.000 ou mais detalhadas;
II – executar os levantamentos de solos e as suas interpretações;
III – estruturar e operacionalizar o sistema nacional de informação sobre solos, de acesso público;
IV – organizar os dados obtidos nos levantamentos de solos no sistema de que trata o inciso III; e
V – implementar as inovações em levantamento de solos e temas correlatos.
Desde sua criação, já foi cumprido o objetivo I. E os objetivos III e IV estão em andamento.
O principal produto de 2020 será a criação da Plataforma Tecnológica do PronaSolos, que será um marco histórico para a governança de solos do Brasil. Nela, todos os dados de solos gerados no país, pelo menos nos últimos 30 anos, que estão disponíveis, poderão ser acessados pela plataforma.
Todos os dados de levantamentos de solos previstos no objetivo II serão produzidos e disponibilizados. Haverá também a possibilidade de cruzamento dos dados de solos com dados de outros recursos naturais, dados socioeconômicos, agropecuários, ambientais, logísticos, entre outros, para que as interpretações resultantes causem efeito positivo para o desenvolvimento sustentável do Brasil.
O lançamento da plataforma está previsto para o dia 5 de dezembro de 2020, Dia Internacional do Solo.
Reportagem: Adriana Ferreira
Foto: Claudio Lucas Capeche, Embrapa Solos
*matéria originalmente publicada no Jornal do Engenheiro Agrônomo nº315