Ciência em apuros
O sistema de financiamento da ciência e da tecnologia no Brasil está sustentado por uma rede que tem como principais financiadores as agências públicas de fomento. No nível federal, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
A primeira instituição é ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e a segunda, ao Ministério da Educação (MEC).
Criado em 1951, o CNPq é a instituição mais antiga nessa área e tem como principais atribuições fomentar a pesquisa científica e tecnológica e incentivar a formação de pesquisadores brasileiros.
Já a missão da Capes é ampliar e consolidar a pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) no Brasil. Entre outras atividades, oferece bolsas de estudo e pesquisa em instituições brasileiras e estrangeiras e faz acordos bilaterais com outros países para fomentar projetos de pesquisa conjuntos.
No nível dos Estados, estão as Fundações de Amparo à Pesquisa. Entre elas, destaca-se a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), que tem, por ano, um orçamento que corresponde a 1% do total da receita tributária do Estado de São Paulo.
A história da Fapesp é reflexo de uma luta que começa em 1947, com a inclusão do artigo 123 na Constituição Paulista, que exigia a criação da instituição e ainda destinava a ela 0,5% da receita do Estado. A entidade iniciou suas atividades em 1960. E, na Constituição de 1988, obteve mais uma vitória com o aumento de 0,5% para 1% do total da arrecadação tributária do Estado.
O relatório da Clarivate Analytics (2018) mostra o quadro atual da produção científica brasileira em praticamente todas as áreas de conhecimento. São Paulo é o primeiro colocado no ranking dos dez Estados mais produtivos em pesquisas e publicação de textos científicos, entre 2011 e 2016. A estabilidade financeira da Fapesp, segundo especialistas, é um dos fatores que ajuda a explicar o bom desempenho do Estado em Pesquisa, Desenvolvimento & Inovação (PD&I).
A base de dados da empresa americana Clarivate indexa meticulosamente o que há de mais importante na literatura científica no mundo e conecta publicações e pesquisadores em todas as áreas do conhecimento.
Outro ator relevante no sistema é a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), órgão público de fomento à ciência, tecnologia e inovação em empresas, universidades, institutos tecnológicos e outras instituições públicas ou privadas, ligado ao MCTIC.
Programas e projetos prioritários de desenvolvimento científico e tecnológico nacionais são financiados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), administrado pela Finep. Sua receita é composta por incentivos fiscais, empréstimos de instituições financeiras, contribuições e doações de entidades públicas e privadas.
Além dessas agências, algumas universidades públicas contam com suas próprias fundações, que têm como missão facilitar o acesso aos recursos e gerir projetos de ensino, extensão e pesquisa.
O suporte à pesquisa pode contemplar a compra de equipamentos, insumos, a concessão de bolsas para estudantes e pesquisadores, dentre outros elementos necessários para o desenvolvimento dos projetos. Cada agência de fomento possui objetivos que podem ser diferenciados, por isso os critérios de seleção de projetos e bolsistas podem variar.
Há ainda a participação das empresas no incentivo à CT&I no Brasil. De acordo com dados da Revista Fapesp, os investimentos do setor privado atingiram 47,1% em 2014, aquém dos registrados nos Estados Unidos (64,1%), na Alemanha (65,8%) e no Japão (77,9%).
Como revelam os dados do relatório Clarivate, o país tem uma produção científica importante, sendo o 13º maior produtor mundial de conhecimentos científicos, acima da Holanda, Rússia, Suíça, Turquia, Taiwan, Irã e Suécia.
Quanto à relevância global, as pesquisas que tratam de meio ambiente, ecologia, psiquiatria, psicologia e matemática se aproximam da média de publicação dos grandes centros de pesquisa e apresenta grande potencial para tornar o Brasil referência mundial nesses temas.
Os campos científicos que mais recebem recursos são: agrícola (10%), tecnologia industrial (6%) e saúde (5%). Essas áreas são também aquelas com maior volume de pesquisas realizadas.
As pesquisas agrícolas, segundo o relatório da organização americana, possuem alto rendimento com baixo impacto internacional. No entanto, o estudo ressalta que essas pesquisas têm relevância dentro do país.
Faca amolada
Todos sabem que as nações mais desenvolvidas investem pesadamente em PD&I e que, por isso mesmo, o que se gasta com essas áreas não deve ser classificado como despesa. Apesar disso e do bom desempenho brasileiro na área, o relatório Clarivate conclui que, a despeito de todo o potencial do Brasil na produção de conhecimentos científicos, tecnológicos e de inovação, os investimentos são modestos e apresentam forte tendência de queda desde que foram adotadas as medidas de austeridade no governo Michel Temer.
A redução acentuada, na verdade, se iniciou em 2014, quando o orçamento do MEC sofreu corte de 19% para o ano de 2015. Desde então, o contingenciamento se repete, chegando, no caso da Capes, à ordem de quase um R$ 1 bilhão até 2017.
Em abril deste ano, o governo federal anunciou bloqueio generalizado em bolsas de mestrado e doutorado oferecidas pelo órgão. As bolsas seriam para alunos que passaram em processos seletivos concluídos e em andamento.
Após protestos, em junho, o governo reviu alguns cortes e adotou critérios diferenciados. Nos casos dos cursos de padrão internacional, as bolsas foram reabilitadas. Já os cursos com duas avaliações nota três consecutivas (Avaliação Trienal 2013 e Avaliação Quadrienal 2017) e cursos avaliados com nota quatro na Avaliação Trienal 2013 e que caíram para nota três na Avaliação Quadrienal de 2017 tiveram parte de suas bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado congeladas para entrada de novos bolsistas.
O orçamento do CNPq, por sua vez, sofreu um corte de 42%. O presidente do Conselho, João Luiz Filgueiras de Azevedo, declarou, em entrevista ao Portal G1, que só terá recursos para pagar bolsas de pesquisa até o mês de setembro deste ano. Para fechar as contas de 2019, ele estima que o órgão necessite de cerca de R$ 300 milhões. Essa conta considera a redução deste ano e os R$ 80 milhões do orçamento usados para pagamento de pendências do ano anterior.
“O contingenciamento recente de recursos para bolsas na Capes é prejudicial porque os pós-graduandos são os “executores” da nossa pesquisa. Se esse contingenciamento persistir ou aumentar, pode haver algo como um “efeito dominó”: menos alunos, menos projetos sendo desenvolvidos, menos trabalhos publicados. É óbvio que é ruim, e todos saem perdendo. Mas nada disso é novidade para os pesquisadores e professores universitários. Ao longo dos anos, fomos aprendendo a tirar água de pedra”, comenta o professor Carlos Guilherme Silveira Pedreira, presidente da Comissão de Pesquisa da ESALQ-USP.
No entanto, ele explica que, na ESALQ, o impacto do contingenciamento dos recursos de bolsas é menor, porque os cursos nota 6 e 7 na Capes não foram impactados e a maioria dos programas de pós-graduação da instituição está nessa categoria.
Para Carlos Frederico Wilcken, diretor da Faculdade de Ciências Agrárias (FCA) da Unesp, o maior problema no Brasil é a falta de perenização dos recursos. “Quando há crise, os governos cortam as verbas da área da cultura e da ciência e tecnologia”, comenta.
Wilcken relata que os cortes de bolsas da Capes, feitos de maneira transversal, trouxeram insegurança para os pesquisadores, especialmente para os estudantes de pós-graduação. “A proposta feita pela Capes, de contingenciamento de bolsas em cursos de menor nível, tem causado impacto, mas existem propostas de reavaliação.”
Entretanto, o diretor da FCA pondera: “Existem cenários em que um curso de baixo nível tinha mais bolsas que um de nível maior; são assimetrias que precisam ser corrigidas pela Capes”.
A Unesp teve cerca de 189 bolsas cortadas e está em análise o contingenciamento para outros programas de pós-graduação. “Na FCA, tivemos a suspensão apenas de uma bolsa e está sendo feita uma reavaliação para tentarmos recuperá-la”, diz Wilcken.
Benefícios inquestionáveis
Para mostrar como o investimento feito por meio do Tesouro Nacional é retornado para a sociedade, a Embrapa produz anualmente seu Balanço Social. “Para cada real aplicado na Embrapa em 2018, foram devolvidos R$ 12,16 para a sociedade. O balanço do ano passado apontou ainda um lucro social de R$ 43,52 bilhões, gerado a partir da adoção, pelo setor agropecuário, de 165 tecnologias e de cerca de 220 cultivares avaliadas”, informa o diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da empresa, Celso Moretti.
“A pesquisa pública agropecuária é um exemplo claro de que vale a pena investir em CT&I. O modelo de desenvolvimento agropecuário brasileiro, baseado em ciência e tecnologia e liderado pela Embrapa, é sucesso mundial”, reforça o diretor.
Ele conta que “os últimos anos foram marcados por uma busca incessante da diretoria executiva em reduzir despesas de custeio da Embrapa, incluindo cancelamento de contratos de prestação de serviços terceirizados”. E acrescenta que preservaram os projetos de pesquisa e de transferência de tecnologia.
Moretti afirma que conseguiram reduzir custos e aumentar a eficiência do macroprocesso de inovação. Mas ressalva: “Creio que chegamos ao limite do que é possível se fazer em termos de racionalização de recursos”.
O dirigente da Embrapa defende que a iniciativa privada precisa se comprometer mais com investimentos em P&D no Brasil. “Sete por cento de todo o conhecimento gerado em ciências agrárias no mundo é desenvolvido aqui. O percentual de 0,55% do PIB aplicado pelas empresas brasileiras em P&D está longe dos 2,68% investidos pelo setor privado da Coreia do Sul ou do 1,22% da China, por exemplo.”
Os investimentos públicos estão na média das nações mais desenvolvidas. “O percentual de 0,61% do PIB brasileiro está próximo do investido pelo conjunto dos países, que é de 0,69%”, analisa Moretti.
O diretor científico da Fapesp, professor Carlos Henrique de Brito Cruz, assinala que “falta ao Brasil a continuidade nas ações governamentais, a articulação das estratégias e ações entre a União e os Estados e um ambiente econômico que estimule as empresas a se engajarem efetivamente em pesquisa, desenvolvimento e inovação”.
A cena paulista
São Paulo se destaca no volume de dispêndios em P&D – cresceu 44% nas últimas duas décadas, com importante atuação de suas universidades estaduais, além da participação da iniciativa privada, que chegou a 63%, ante 40% no conjunto do país, segundo informa a Revista Fapesp. A Universidade de São Paulo (USP) é a maior produtora de pesquisa, com mais de 20% da produção nacional.
Apesar da crise econômica, Brito Cruz, da Fapesp, afirma que as universidades estão conseguindo recuperar seu equilíbrio financeiro e que os institutos têm desenvolvido parcerias com empresas. “Jovens pesquisadores têm sido trazidos do mundo todo para São Paulo, com o apoio da Fapesp, para instalarem projetos de pesquisa ousados nas instituições paulistas – só nos últimos cinco anos foram 300”, comenta.
Mas nem tudo são flores e há questões que têm gerado preocupação principalmente para os pesquisadores ligados aos institutos estaduais de pesquisa.
Segundo a presidente da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), Cleusa Maria Montovanello Lucon, há risco de um apagão científico. “Desde o início do governo do PSDB, houve um desestímulo na contratação de novos profissionais. Eu diria que, em 2003, quando ocorreu o último concurso público, o governo parou de estimular a realização de pesquisa nos institutos.”
Conforme dados do Diário Oficial, de 30 de abril de 2019, havia 549 pesquisadores na ativa na Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo até dezembro de 2018. Segundo a APqC, o número deveria ser de 1.207 profissionais. Além disso, 60% dos atuais servidores estão com idade acima de 50 anos. Com relação às carreiras de apoio técnico e administrativo, os institutos operam com menos de 20% do quadro e 80% dos funcionários têm mais de 50 anos.
Cleusa diz que, mesmo que o governo comece a contratar hoje, o retorno para realizar pesquisas básicas demora de 10 a 20 anos. “Por isso eu não sei se será possível evitar o apagão.”
Ela critica o que chama de modismo, que tende a valorizar a pesquisa aplicada em detrimento da pesquisa básica. “Falam muito de startup, mas ela surgiu de um aluno que fez um curso de mestrado e doutorado, na academia, nas universidades ou nos institutos de pesquisa, onde os orientadores são munidos de todos os conhecimentos da pesquisa básica, e que finalizou em uma pesquisa aplicada. O que está acontecendo, que nos preocupa muito, é que se divulga que é possível ter pesquisa aplicada sem a realização da pesquisa básica”, resume.
Para Cleusa, o problema é a falta de vontade política, e não ausência de recursos. “Com certeza tem dinheiro, principalmente quando se sabe que não é gasto, mas sim investimento. Já se comprovou que a cada R$ 1 investido em pesquisa se tem um retorno de R$ 13 para os cofres públicos”, conclui.
Entre 2009 e 2018, a Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA), que concentra os institutos de pesquisa do Estado, registrou perda no orçamento, que caiu de R$ 258,15 milhões para R$ 209,66 milhões.
O diretor administrativo da Fundação de Amparo à Pesquisa Agrícola (Fundag), Renato Ferraz A. Veiga, reforça as críticas. “Os contingenciamentos, que vêm sendo uma rotina adotada pelos governos estaduais, desde o governo de Mário Covas, engessa cada vez mais os institutos de pesquisa e mesmo as universidades. Ficamos numa situação muito delicada no principal Estado do Brasil. Os cortes praticamente barraram a contratação de pessoal de apoio à pesquisa.”
Ferraz completa dizendo que “as fundações de apoio à pesquisa científica, como a Fundag e a Fundepag, têm papel primordial, essencial, na viabilização de pesquisas, hoje, no Estado de São Paulo”.
“Sem as fundações, não teria como os institutos de pesquisa sobreviverem no atual quadro. Os institutos vêm sofrendo já há muitos anos e dificilmente esse quadro poderá ser revertido com a atual situação perdurando por muito mais tempo”, vaticina.
O diretor da Fundag exalta a atuação da Fapesp e diz que a organização contribui para dar sobrevida à pesquisa no Estado.
Os valores aplicados pela Fapesp no financiamento a auxílios e bolsas em 2016, 2017 e 2018 foram, respectivamente, R$ 1,1 bilhão, R$ 1,06 bilhão e R$ 1,2 bilhão. As verbas investidas por ano para o financiamento à pesquisa em temas relacionados à agricultura, pecuária e agronegócio giram em torno de R$ 170 milhões.
Em nota enviada ao JEA, a assessoria de imprensa da APTA afirma, dentre outras coisas, “que a captação de recursos via iniciativa privada cresce a cada ano na APTA em valores absolutos e percentuais. Esse crescimento constitui um indicador da confiança que a sociedade deposita na competência técnica da APTA. Além da imagem institucional construída pelos institutos ao longo de suas histórias (…)”.
A nota finaliza: “Esclarecemos que a Lei nº 13.243/16, chamada de Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, favorece a criação de um ambiente de inovação mais dinâmico no Brasil. Aliada a decretos e resoluções assinadas pelo governo do Estado de São Paulo e pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, formam um novo arcabouço legal que desburocratizam, incentivam e deixam claras as regras para a relação entre os institutos de pesquisa ligados à APTA e a iniciativa privada. A partir dessa legislação, é possível que empresas privadas utilizem a estrutura de pesquisa dos institutos, desde que isso não atrapalhe o andamento dos trabalhos desenvolvidos por essas unidades”.
Os recursos financeiros sempre serão um fator de discussões na área de CT&I. Porém, muitos dos atores envolvidos na produção científica consideram fundamental que a sociedade brasileira tenha mais conhecimento sobre o universo das ciências e que possa ampliar sua consciência sobre a relevância das pesquisas realizadas nas universidades e nos institutos. Um povo que reconhece a importância da educação e da ciência, mesmo em tempos de crise financeira, é capaz de exigir de seus governantes o comprometimento com essas áreas.
Por Adriana Ferreira