O Milagre do Abastecimento de Alimentos
O anacronismo das grandes centrais de abastecimento localizadas em áreas urbanas
*Decio Zylbersztajn
Na década de 1990, eu atuava em um projeto que comparava os negócios agrícolas no Brasil e na Holanda. Como parte das atividades, visitei as estruturas dos leilões de produtos agrícolas que funcionam como mercados e centrais de distribuição. Os “veilings”, como são chamados, funcionam como parte de organizações cooperativas que oferecem a compradores e vendedores um ambiente virtual onde as transações são realizadas. Os produtores são os cooperados e os “veilings” são especializados por produtos.
Um auditório confortável, com estações de trabalho e ar-condicionado, reúne os compradores de toda a Europa e de outras partes do mundo. Representantes de grandes supermercados e outros atores da distribuição de alimentos devem ser cadastrados, e lá se reúnem para tomar decisões de compra. As operações são feitas em tempo real no auditório, os compradores observam um painel que mostra o produto, a classificação do produto e o nome do produtor.
No painel que centraliza as atenções, se destaca um relógio redondo com um ponteiro que indica o preço. Quando acionado, o preço que aparece é elevado, vai caindo até que um comprador aperte o botão da compra. Ou seja, trata-se de um leilão ao contrário. Os compradores sabem qual o preço que podem pagar e competem com os outros compradores que podem acionar o botão a qualquer momento.
No caso de vegetais, o nome do produtor é mostrado, não sendo necessário apresentar o produto. Os compradores podem obter informações detalhadas em outro ambiente, na maior parte das vezes os vendedores são conhecidos pelo nome. No caso do “veiling” de flores, um carrinho com uma amostra do produto era apresentado.
Os vegetais são padronizados e controlados de modo rigoroso, de tal modo que não existe a necessidade de observar o produto. O padrão indicado no painel dá toda a informação necessária. No caso das flores, ainda que existam padrões, a variabilidade gera a necessidade de observar uma amostra antes de rodar o relógio do preço.
Um detalhe importante, no local havia caminhões com os produtos, mas a maior parte da produção física não passava pelo “veiling”. Uma vez dada a ordem de compra, a informação é passada para o produtor e o seu caminhão sai da propriedade ou de um entreposto da cooperativa e segue diretamente para o endereço do comprador, que poderia ser em qualquer local da Europa. O produto não viaja, quem viaja é a informação.
Na década de 1990 do século passado, a Holanda já demonstrava a importância do trânsito da informação e não do produto, e oferecia uma lição a respeito da relevância da padronização. Mostrava também o poder da ação coletiva via cooperativas de produtores, os verdadeiros donos do “veiling”.
Padrões permitem que transações sejam realizadas a custos reduzidos por minimizar a necessidade de verificações e checagens. Caso algum produtor encaminhe o produto fora do padrão, ele sofre uma penalidade.
Observei que o auditório ficava lotado em algumas ocasiões; fui indagar a respeito. O efeito da reputação opera nesse tipo de mercado, os bons produtores são reconhecidos, funcionam como verdadeiras marcas, quando aparecem no painel, o nome de determinados produtores cria o interesse dos compradores, que reconhecem a reputação daqueles que sabem produzir bem.
Para mim, foi uma experiência que demonstrou que mercados podem funcionar bem quando têm regras, que cooperativas bem geridas podem gerar valor para os cooperados e consumidores e que produtos não precisam viajar fisicamente para serem transacionados.
Realidade brasileira
De volta ao Brasil, fiz com os meus alunos vários estudos de comercialização, subimos na boleia de caminhões e acompanhamos cargas de tomates e de batatas no trajeto entre o campo e o terminal de São Paulo. No caso das batatas, identificamos uma estrutura que dominava o mercado de tal maneira que não era qualquer caminhão que conseguiria descarregar o produto no terminal.
No caso dos tomates, identificamos que o padrão variava a depender da oferta, ou seja, não existia padrão, embora os técnicos da Ceasa se empenhassem no desenvolvimento detalhado de estudos de padronização para cada produto. Compreendemos que os padrões atrapalhavam os comerciantes, sem padrões eles teriam mais espaço para interferir sobre os preços a serem pagos aos produtores.
Um produto poderia sair de Minas Gerais, chegar à Ceasa onde sofreria algum tipo de separação por qualidade, e não raras vezes voltaria para Minas Gerais para ser consumido. Um verdadeiro passeio desnecessário de caminhões entrando e saindo de uma das maiores áreas urbanas do mundo, gerando custos que seriam incorporados ao preço final.
A falta de padronização, o controle dos mercados por alguns comerciantes dominantes, a inexistência de sistemas de informação estruturados, a falta de regramentos para a operação dos mercados me mostraram que tanto produtores como os consumidores sofriam as consequências da ineficiência da central de abastecimento. A operação da maior central de abastecimento da América Latina me ensinou que o abastecimento de alimentos nas metrópoles brasileiras é um milagre que acontece todos os dias. Alguém paga o preço desse milagre.
Estamos no início da década de 2020 e eu me pergunto o que mudou no sistema de abastecimento de alimentos no Brasil. Em plena pandemia, em uma metrópole com a dimensão de São Paulo, observamos que a fotografia não mudou, com algumas exceções.
Surgiram centrais especializadas como é o caso do “veiling” da Holambra, que replica no Brasil o modelo da Holanda. A exceção justifica a regra, o sistema que predomina é anacrônico, incompatível com as necessidades do país, o que coloca em cheque a competência da sua gestão.
Em tempos de fome, as centrais de abastecimento deixam enorme quantidade de lixo-alimento que não precisaria ter viajado da produção até São Paulo para ser descartado. Poderia ter sido classificado, se padrões existissem, separado e descartado no local de origem. Talvez até mesmo reprocessado, virando alimento consumível. A central de abastecimento de São Paulo foi federalizada, ou seja, é gerida pelo governo central, tem um militar no comando, talvez pelo fato de que militares entendem de logística.
O modelo das grandes centrais de abastecimento localizadas em áreas urbanas parece anacrônico. Representam um resíduo da época em que foram criados, sem prever a expansão das malhas urbanas. As grandes centrais funcionam acopladas às feiras livres.
Se o leitor nunca viu a montagem de uma feira livre, convido-os a acordar cedo para ver o desembarque descuidado das caixas com produtos que serão postos à venda. Feiras livres são locais agradáveis e apreciados pelos habitantes das metrópoles, uma tradição que merece ser mantida. Para tanto, o seu modelo deve ser revisitado.
Estamos em 2021 e o alimento é um produto que ainda viaja sem necessidade. Estamos em um tempo em que a tecnologia logística existente, a conectividade, as ações coletivas estruturadas das cooperativas poderiam alterar o quadro de perdas, de ineficiências e mesmo de exposição dos produtos a problemas sanitários reais.
*Decio Zylbersztajn é engenheiro agrônomo, escritor e professor titular sênior da Universidade de São Paulo.
Foto: Divulgação/CEAGESP