Um revés ao antigo normal
Nos principais cinturões cafeeiros do país, aproxima-se a temporada de colheita das lavouras. Para a corrente safra, a estimativa oficial indica quantidade colhida entre 57 a 62 milhões de sacas de 60kg de café beneficiado (CONAB, 2020). Outras estimativas, realizadas por consultorias privadas e instituições financeiras, oscilam em torno das 65 milhões de sacas, o que representaria recorde histórico da cafeicultura brasileira. Tal otimismo se alicerça no comportamento favorável do clima, permitindo desenvolvimento satisfatório das plantas e dos frutos associado ao crescente emprego, por parte dos cafeicultores, de tecnologia agronômica de ponta.
O avanço tecnológico da cafeicultura nos últimos 30 anos foi exponencial. A adoção do adensamento das lavouras, da irrigação fizeram a produtividade exibir formidável salto. No quesito de diminuição dos custos visando o incremento da competitividade a mecanização da colheita tornou-se exigência inescapável. Cafeicultores em situação de montanha implementaram o terraceamento justamente para viabilizar o ingresso das máquinas. Derriçadoras manuais, colhedoras de arrasto e automotrizes já respondem pela parte majoritária da colheita no país. Entretanto, serviços adicionais de repasse e varrição são, ainda, predominantemente braçais (assopradores e varredores mecânicos são cada vez mais frequentes nas lavouras).
Segundo os modelos epidemiológicos, que amparam o enfrentamento dos governos ao surto virótico, a partir da segunda quinzena de abril até final de maio de 2020, a pandemia global de Covid-19 deverá atingir seu pico de infectados e de vitimados no Brasil. Essa previsão se sobrepõe ao calendário cafeeiro de início da colheita que, normalmente, começa pelas lavouras de conilon rondonienses e se estende até setembro para os cafés arábicas de maturação tardia.
Muitas fazendas de café brasileiras (tanto de perfil empresarial como familiar) contam, atualmente, com algum tipo de certificação. Invariavelmente, os protocolos públicos e privados contemplam a exigência em se atender a todos os parâmetros estabelecidos pela legislação trabalhista (e também ambiental). Essa maciça adesão de nossa cafeicultura aos certificados é avanço internacionalmente reconhecido e exaltado.
A irrupção da pandemia, no Brasil, implica em modificações significativas nos procedimentos de colheita do café para além do que estabelece a legislação. Para evitar a paralisação da colheita devido ao surgimento de casos de Covid-19, os cafeicultores, especialmente de perfil empresarial, terão de implementar as normas como: isolamento social; EPI completo + álcool gel + máscaras; higienização frequente dos veículos de transporte e das instalações de higiene pessoal (lavatórios, sanitários móveis); ferramentas e equipamentos de colheita devidamente identificadas e diariamente higienizadas. Enfim, várias recomendações (que tornam mais rígidos os requisitos de segurança do trabalho) para que a colheita não seja interrompida devido ao surgimento de colaboradores afastados por terem sido expostos ao vírus.
Na chegada da safra ocorre súbita intensificação da demanda por mão de obra de colheita. Bastante disseminada é a prática de se buscar trabalhadores de outras regiões, e até de outros estados, para atuar na colheita das lavouras. Esse trânsito de safristas é comum em alguns dos principais cultivos do país, destacando-se a cana-de-açúcar e os pomares de laranja. Em sua maioria são trabalhadores registrados e, portanto, com direitos trabalhistas assegurados.
Os trabalhadores recrutados em regiões distantes, típicos representantes da categoria mais fragilizada da população, são alocados em alojamentos coletivos que não diferem muito das habitações das quais se originam. Tal procedimento até então corriqueiro se tornou absolutamente inapropriado para os tempos atuais. O perfil do colaborador dessa safra terá que pertencer ao raio de influência da propriedade (município e seu entorno). As próprias municipalidades comunicam aos cafeicultores para dar preferência aos moradores locais, pois a vinda dos safristas pode se converter em um problema adicional aos já saturados e/ou colapsados sistemas de saúde locais.
Adicionalmente, a decretação, por parte das autoridades públicas, das quarentenas, de fechamento das fronteiras e nos casos mais drásticos do lockdown interrompem os fluxos logísticos envolvendo pessoas e, portanto, as possibilidades de mobilização da mão de obra. Essa diretriz pública, associada a todo os demais argumentos e consequências acima relacionados, colapsa componente estrutural do capitalismo tardio subdesenvolvido brasileiro (denominado de modernização conservadora), que consiste na permanente criação e perpetuação de massivo contingente de “exército de reserva”1.
Expressiva parcela do desemprego rural é produzida pelas mudanças tecnológicas em que a colheita mecânica do café é contundente exemplo. Ao produzir demissões em massa o capital conquista apreciável poder sobre o excedente de oferta de trabalho (exército de reserva)2, habilitando-se a gerir sua demanda intrínseca por trabalhadores, regulando assim a formação de seus preços (salários) absolutamente alinhados com o nível de sua subsistência básica (o mais baixo possível). Afora esse contingente excedente de trabalhadores há, ainda, o potencial latente formado pelos autônomos, mulheres e crianças que ainda não foram mobilizados pelo mercado de trabalho.
Na cafeicultura, o pagamento por medida (balaio) colhido é bastante variável por cinturão e produtividade dos talhões. Nas zonas mais desenvolvidas, os preços pagos são algo maior do que aqueles praticados nas zonas periféricas. Os talhões em que a carga de frutos é mais elevada retribuem menos por medida colhida, porém o resultado final se torna mais vantajoso para o trabalhador devido o rendimento obtido no dia. Enfim, são acordos específicos da cultura que assim procede desde tempos imemoriais.
A disruptura excedente de mão de obra e, consequentemente, do mecanismo de formação de preços do trabalho (salário) devido a imposição das medidas de controle sanitário de combate a pandemia, redesenha a forma como a corrente colheita será conduzida. Ao mobilizar a força de trabalho preferencialmente local, os preços pagos terão exigência que suplantam a subsistência acrescido de variados graus de dignidade e conforto. Traduzindo: a colheita terá piso salarial mais alto!
Claramente demonstra a pandemia que, sob desigualdade econômica e social, não há destino promissor para a sociedade. Assim, a cafeicultura tem a possibilidade de antecipar o futuro da nova economia brasileira que emergirá dessa crise. Não será mais possível apenas crescer economicamente sem buscar, exaustivamente, o desenvolvimento. O déficit de inclusão social brasileiro precisa ser vencido por meio de ferrenho combate às desigualdades, saltando para novo patamar com mais cidadania, menos heterogeneidade social e profundamente democrático. Garantir vida digna para cada cidadão será o alicerce das políticas públicas e do empenho mercantil das empresas privadas.
O modelo econômico que emergirá não terá mais por premissa conceitos neoliberais de “Estado Mínimo” e outras bobagens, amplamente disseminadas pela mídia proselitista. A cafeicultura pode apresentar esse novo jeito de produzir e distribuir riquezas, conformando uma sociedade com a qual sempre sonhamos e lutamos, começando pelo resgate à cidadania dos que mais precarizados foram pelo superado modelo anterior, pautado na exclusão e aprofundamento das desigualdades.
1 Nos países avançados o sentido de marxiano de “exército industrial de reserva” perdeu grande parte de poder explicativo pois, o desemprego se transformou em um condicionante estrutural dessas economias. Para o Brasil que recém alcançou a III Revolução Industrial o conceito permanece funcional e que se soma ao fenômeno estrutural das economias avançadas.
2 Esse aspecto é brilhantemente discutido por:
HARVEY, D. 17 Contradições e o fim do capitalismo – cap.: 12 Disparidades de Renda e Riqueza. BOITEMPO Editorial, 2016. 298p.
“Será preciso olhar para os mais necessitados que, muitas vezes, estão ao nosso lado”
Zeina Latif – Economista
Celso Luis Rodrigues Vegro
Eng. Agr.,MS, Pesquisador Científico do IEA